Publicado em: 20/08/2022 Atualizado:: agosto 20, 2022
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Por Almir Zarfeg*
Subvertendo o método analítico, que parte do geral para o singular, vamos nos concentrar no poema “11º Mandamento”, extraído do livro “Balada da misericórdia na primavera”, que acaba de sair pela Lura Editorial.
Inicialmente, vamos nos concentrar nos planos de expressão e de conteúdo para, somente depois, tirar algumas conclusões sobre a mais nova obra poética do ocupante da Cadeira 36 da Academia Teixeirense de Letras (ATL) – Erivan Santana.
Pois bem, formalmente, estamos diante de um poema composto de versos livres, o que é marca registrada da produção de Erivan, que sempre prefere o ritmo à rima, a fluência à metrificação. Enfim, trata-se de um poeta herdeiro das conquistas modernistas que revolucionaram o jeito de poetar, trocando o complicado pelo simplificado, mas sem abrir mão da qualidade literária.
O poema “11º Mandamento”, que abre as 60 baladas que compõem a obra em questão, possui cinco estrofes, compostas de maneira irregular: a 1ª e a 2ª estrofes têm dois versos, sendo chamadas de “dísticos”. A 3ª estrofe possui três versos, o que lhe vale o nome de “terceto”. A 4ª e a 5ª estrofes repetem as anteriores, possuindo dois e três versos, respectivamente.
Este poema – nossa atenção continua focada no texto propriamente dito – envolve palavras e expressões bem conhecidas e coloquiais, mas escolhidas com critério, de modo que a leitura flua sem nenhuma dificuldade. A única novidade é o substantivo próprio “Cézanne” –, que remete ao pintor pós-impressionista francês Paul Cézanne –, com quem Erivan dialoga e é referência notável no texto.
No plano do conteúdo, por sua vez, é onde vamos encontrar as referências, implícitas e explícitas, que conduzem o texto, revelando as escolhas temáticas do poeta e, também, dando pano para algumas reflexões.
Logo no título, o poeta dialoga com o famoso decálogo judaico-cristão, mas inova propondo um novíssimo mandamento, em que, em vez do pecado da cobiça, sugere a liberdade de invenção proporcionada pela pintura e pela poesia. Em vez do castigo imposto pela religião, administra a esperança colhida nas manhãs.
Na 1ª estrofe (dístico), o poeta estabelece uma comparação entre verso e pincelada, dando o pontapé inicial. Não fosse o “como” no meio do caminho, o autor teria criado uma metáfora de grande expressividade. De todo modo, a equação Verso + Pincelada + Céu = Beleza é gostosa de se ler/ver.
A partir dessa introdução imagética (ninguém resiste à força de uma imagem), na 2ª estrofe (dístico) o poeta explicita o contraste entre as cores azul e cinza (fria e neutra), para desembocar em ninguém menos que Paul Cézanne, pintor que volta e meia é citado por Erivan Santana.
Na 3ª estrofe (terceto), além do encontro marcado com o pintor, Erivan se declara às cores e celebra a vida, antecipando a primavera que tem data marcada para chegar – 22 de setembro – ao hemisfério sul.
Na 4ª estrofe (dístico), o poeta anuncia alguns elementos naturais – vide “manhã” – que se estendem à 5ª estrofe (terceto) – vide “vento” –, encaminhando-se para o grande final, em que filosofa que tudo, inclusive o poema, é ilusão e desejo de felicidade.
Destrinçado o poema, vamos às conclusões imediatas: na forma o texto é esquemático e flui como uma balada, envolvendo o leitor pela informalidade da linguagem e singeleza do vocabulário. Na temática, no lugar do pecado e da cobiça, presenteia os leitores com vaso de flores, votos de esperança e sopros de felicidade.
Dito isso e antes que a estação das flores nos tome com seus aromas, já deu para notar que a intertextualidade é um recurso recorrente em Erivan Santana. Ela está presente neste “11º Mandamento” e nos 59 demais poemas que compõem “Balada da misericórdia na primavera”. Nada contra, até porque aparece de maneira espontânea e não forçada, providencial e não gratuita. Pois o excesso de referências pode comprometer a criatura, assim como a ausência de repertório pode fragilizar o criador.
Apenas apresentei e comentei um único poema de uma obra interessante e promissora, partindo da unidade para o todo, mas cada leitor, ao saborear os textos na íntegra, vai tirar suas próprias conclusões. Então, ótima balada!
Um verso como uma pincelada na
Tela difusa da amplitude do céu
A tarde sempre poderia ser azul
Não fosse o cinza dos facínoras
Por isso, Cézanne pintou
Um mergulho em tela cheia
Em cores, celebração da vida
Nas manhãs, sempre há um
Sussurro de esperança e fé
Percorrendo o tempo
O vento sempre traz ilusão
Místico desejo de felicidade
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*Almir Zarfeg, poeta e jornalista, é presidente de honra da Academia Teixeirense de Letras (ATL).