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Cem anos após sua morte, Rui Barbosa segue relevante, mas já não atual como antes

Publicado em: 06/03/2023 Atualizado:: março 6, 2023

 

Por Almir Zarfeg*

 

Em 1964, o historiador e escritor Raimundo Magalhães Júnior publicou o livro “Rui, o homem e o mito” com o objetivo de botar por terra uma das poucas unanimidades nacionais, revelando que a figura do herói acima de qualquer suspeita havia sido construída de maneira desonesta e mentirosa.

 

Assim, passagens importantes (e até heroicas) da vida de Rui Barbosa – como seu protagonismo na 2ª Conferência de Haia em 1907, sua posse como 1º ministro da Fazenda do governo provisório de Deodoro da Fonseca, o famigerado Encilhamento, bem como a acusação de nepotismo contra sua pessoa – ganharam revisão segundo os critérios estabelecidos por Magalhães Júnior. Critérios contaminados pelo sensacionalismo e, portanto, desprovidos de rigor histórico.

 

Como era de se esperar, o livro causou muito barulho quando de sua publicação, o que lhe valeu logo uma 2ª edição, inclusive se tornando alvo de artigos violentos na imprensa por parte de intelectuais, sobretudo dos chamados ruístas, que não admitiam a desmoralização do seu mito por alguém que estava mais para “piolho da águia” do que para crítico da ave de rapina. Em sessão da Academia Brasileira de Letras, Luís Viana Filho, conhecido biógrafo de Rui, quase chegou às vias de fato com Magalhães Júnior.

 

 

Também muito irritado com o autor de “Rui, o homem e o mito”, o presidente da Fundação Casa de Rui Barbosa – Américo Jacobina Lacombe – organizou um seminário para rebater capítulo por capítulo da publicação escrita com a intenção pura e simples de esculhambar o prestígio do ilustre e saudoso baiano nascido em 5 de novembro de 1849, em Salvador/BA, e falecido em 1º de março de 1923, em Petrópolis/RJ.

 

Em artigo publicado na revista Digesto Econômico, de maio de 1965, Jacobina começou assim: “O que mais me preocupou quando um amigo comum me preveniu que o Sr. Magalhães Júnior preparava um livro sobre Rui Barbosa não foram os enganos e os erros que ele pudesse cometer e que se apontam em outros trabalhos seus, nem mesmo os ataques que ele ousasse desferir. Era, acima de tudo, o tom, o aspecto mercantil, espetacular que ele costuma imprimir às suas biografias, a encenação que faz preceder aos seus lançamentos, insistindo no quê de escandaloso, próprio da literatura marrom…” E concluiu nestes termos: “Mas alguma coisa resultou de vantajoso nesse debate em torno do livro [de Magalhães Júnior]. Foi a demonstração de ser livre neste País a pesquisa da verdade histórica. Não foi em vão que Rui semeou a liberdade. A sua obra é de tal grandeza que, ainda para atacá-lo, é preciso servir-se de seu legado…”
Pois bem, passados 59 anos da terrível 1ª edição do livro de Magalhães Júnior e 100 anos do passamento do notável Conselheiro – título que Rui Barbosa recebeu do imperador D. Pedro II –, os tempos são bem outros. Nestes dias bicudos e líquidos, marcados pela rapidez das informações, quase sempre contaminadas por fake news, alimentados pelos polarismos ideológicos e sacudidos pelos negacionismos de toda ordem, ninguém sabe mais quem foi Rui Barbosa. Isso vale também para Castro Alves, Medeiros Neto e os irmãos Mangabeira, para ficar nessas personalidades baianas.

 

 

Com os revisionismos históricos, que têm priorizado a contribuição das massas e da coletividade, em detrimento dos feitos das grandes figuras, era previsível que personalidades notáveis saíssem de cena para que outros personagens menos expressivos ocupassem o espaço público e até – por que não? – a atenção dos especialistas e historiadores. Nada mais justo. Mesmo porque a história é resultado da contribuição de todos e todas, com maior ou menor protagonismo dos envolvidos.

 

Mas, como eu estava dizendo, o que esperar desses tempos bicudos em que a desinformação grassa e os conteúdos – independente de seus significantes – são consumidos de maneira rápida e automática? Infelizmente, esse pragmatismo é muito mais interessante do que qualquer conhecimento deixado por alguém como Mário Augusto, Deolisano Rodrigues e Sady Teixeira, para ficar de novo em três lideranças baianas ou baianeiras.

 

 

Em debate rápido com um confrade acerca do Rui orador, fui premiado por esta bela ironia da parte dele: “Aquele velhinho que lia discursos longos e deliciosos para uma plateia que, mesmo horrorizada, tinha que aguentar até o final! ”. Os textos ruianos – escritos e/ou ditos como discurso ou conferência – se encaixam no padrão estético e retórico da sua época. Mas sua qualidade estilística, forjada nas regras da escola parnasiana, é indiscutível. Tanto que ele não só participou da fundação da ABL, ocupando a Cadeira 10, como ainda presidiu a instituição literária e cultural por longos 11 anos. Sim, nobre confrade, os discursos de Rui podem ser lidos ainda hoje, já os de José Joaquim Seabra eram para ser ouvidos. Mas quem é mesmo J. J. Seabra?

 

Rui Barbosa era duma época em que as pessoas ou nasciam no berço de ouro das oligarquias ou vinham ao mundo nas cidades, a exemplo dele, e tinham que se apegar aos estudos para conquistar um futuro melhor. Claro que a família de Rui – que não possuía latifúndio, mas era bem relacionada – podia se considerar privilegiada. O mesmo não se pode dizer do grosso da população baiana que, em vez de sonhos, tinha pesadelos nos anos difíceis da transição entre o fim do Império e o início da República.

 

Após concluir os estudos preparatórios em Salvador, então capital da província, ele se matriculou na Faculdade de Direito do Recife/PE e, anos depois, concluiu o bacharelado em São Paulo, tendo como colegas nomes que ficariam famosos nacionalmente, tais como Castro Alves, Rio Branco, Afonso Pena e Rodrigues Alves.

 

Já graduado em Direito e após uma estada no Rio de Janeiro, ele retornou a Salvador para trabalhar na firma da família Dantas e, paralelamente, dar início à carreira de jornalista e político filiado ao Partido Liberal. Em breve, seria promovido a deputado provincial e, depois, a deputado geral.

 

 

De volta à Corte, mas sempre tendo a Bahia como colégio eleitoral, o deputado Rui Barbosa causava sensação graças à habilidade para o debate e à capacidade de enfrentar grandes oradores. Ao mesmo tempo em que ganhava notabilidade por suas convicções em favor dos escravos (Projeto Dantas) e do federalismo (bandeira pessoal) e, portanto, contrárias aos escravocratas e ao centralismo imperial. Por causa dessas posições “progressistas”, chegou a ser tachado de comunista.

 

A essa altura dos acontecimentos, em que se viviam os instantes finais do império, o combativo baiano fazia valer suas habilidades de advogado, com grandes defesas nos tribunais, de jornalista, com artigos publicados na imprensa carioca, posicionando-se em face dos grandes temas da atualidade. Como não havia conseguido se reeleger deputado geral, voltava sua atenção para as denominadas campanhas, polemizando com seu talento estilístico e exibindo sua retórica agressiva. Durante o gabinete do visconde de Ouro Preto, em 1889, o jornalista que até então defendera a monarquia com unhas e dentes começava a dar sinais de interesse pela República e, também, a contribuir para o surgimento do clima favorável à derrubada do Império…

 

Os próximos capítulos dessa história já são conhecidos de todos nós – de alguns de nós, é verdade – com a proclamação da República, o degredo da família imperial, o governo provisório de Deodoro da Fonseca, a posse/renúncia de Rui no Ministério da Fazenda, a queima dos arquivos da escravidão, o golpe do vice Floriano Peixoto, o exílio de Rui na Inglaterra, o caso Dreyfus, enfim, todas as conquistas que decorreriam do retorno de Rui Barbosa aos Estados Unidos do Brasil (nome aliás sugerido por ele), em 1895, já no governo do presidente Prudente de Morais, e que fizeram dele a personalidade mais conhecida e querida do país durante décadas. Hoje em dia, ele perderia esse posto facilmente para outros mitos mais, digamos, descartáveis.

 

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*Almir Zarfeg é poeta, jornalista e membro da Associação Bahiana de Imprensa (ABI).


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