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Poemas com cor, voz e sede de justiça em “Negrura”, de Edson Cruz

Publicado em: 05/06/2023 Atualizado:: junho 5, 2023

 

Por Almir Zarfeg*

 

Com exceção dos títulos (grafados em caixa alta), todos os poemas que compõem “Negrura” (Kotter Editorial, 2022), de Edson Cruz, se iniciam com letras minúsculas.

 

No geral, os textos poéticos assumem a forma de versos livres e, portanto, prescindem das rimas e da métrica, com raras exceções, como no caso do “Soneto de bolso”, que apresenta apenas o 1º quarteto – com versos rimados (ABBA) e metrificados (decassílabos). Aparece também uma quadra (não uma trova, conforme informado) – com rimas nos 2º e 4º versos, mas sem a presença da métrica.

 

Formalmente, os textos são escritos em uma linguagem simples, mas não simplória, com a qual o leitor com alguma intimidade poética não terá maiores dificuldades. Até porque os versos fluem ao ritmo da fala, do fôlego e do coração.

 

Logo de início, o leitor nota que os poemas se apresentam no centro da página em branco, visíveis, em estrofes longas ou curtas. Seja pela dureza do tema tratado ou pela disposição visual dos textos, a obra atrai e cativa a atenção do início ao fim da leitura.

 

No geral, o livro mantém uma abordagem antirracista e, para tanto, recorre aos acontecimentos históricos para, de posse das tragédias e injustiças socais vivenciadas pelo povo negro brasileiro, denunciar os agressores e defender os agredidos. O poeta lança mão do recurso da intertextualidade e outros tantos recursos para criticar os desmandos passados e atuais.

 

O livro “Negrura” – mais que uma simples oposição a “brancura” – se impõe como literatura de contestação, mas não se encerra na crítica pela crítica e tampouco se esgota no verso pelo verso. Muito pelo contrário, nele expressão e conteúdo se equilibram e se articulam para a mais nobre das missões poéticas: a defesa da dignidade humana e a reparação histórica como, aliás, tantos outros guerreiros empreenderam no passado, empreendem no presente e empreenderão no futuro, se necessário for.

 

Dessa maneira, tanto do ponto de vista da expressão quanto do sentido, Edson Cruz dispõe de uma série de recursos para viabilizar sua poética. A arte Adinkra, por exemplo, marca presença através da reprodução de seus ideogramas. Ela ilustra as páginas da obra e, mais que isso, dialoga com os textos e, também, com as intenções do porta-voz do protesto em curso. No caso, o poeta.

 

A preocupação metapoética e/ou metalinguística acompanha os poemas, seja nas referências a outros subgêneros poéticos, seja nas reflexões sobre o próprio fazer artístico ou na aproximação verbal/visual. Isso aparece claramente em poemas como “Não”, “Diáspora”, “Lusofonia”, “Garatujas” e “Mise en abyme”.

 

Os diálogos mantidos com outros poetas e autores negros – como Cruz e Sousa e Lima Barreto, cujos nomes aparecem como títulos de textos – e com outros nomes, negros ou não, como Castro Alves, Oswaldo de Camargo e Frantz Fanon, enriquem a obra e a inserem na luta antirracista inter/nacional. Esse esforço de intertextualidade é valioso.

 

Mas a reflexão crítica e social constitui o ponto alto de “Negrura” sem sombra de dúvida. E os 27 poemas – cada qual à sua maneira e propósito – cumpre o papel relevante de sensibilizar a todos e todas sobre um passado terrível que, ainda hoje, repercute no país. Passado esse que não foi assimilado, sublimado e, presentificado, resiste na forma de ódio racista e irracional.

 

Poemas – como “Homeless”, “Não” “Urbanidade”, “Coffea Arabica”, “Flora”, “Lusofonia” e “Ministério do Ultramar” – impactam pela expressividade intrínseca que detêm e perturbam pela crítica mordaz que carregam consigo. Graças à plasticidade e ao conteúdo, os versos cumprem sua missão de explicitar o monstro escravista atávico que, infelizmente, segue fazendo vítimas. Vítimas do racismo, das desigualdades sociais e do egoísmo psicológico.

 

Subjacente à crítica social e à reflexão política, há também espaço para o lirismo em “Negrura”. No poema “Banzitude”, por exemplo, o próprio Edson Cruz se apresenta com nome, sobrenome, cicatrizes e anseios.

 

Movido pela “Banzitude” – um neologismo para nostalgia ou mesmo saudade –, ele se expõe sem meias palavras: “pesam em meu lombo / onomatopeias bem suspeitas”.

 

E segue revelador: “sou zé e filho de edward / um desterro sem quilombo à vista / e sobre o nome / a entrevista cruz”.

 

Ele acrescenta valente: “sou nenhum / mulato pardo negro índio / mal parido / tingido e d’água salgada / vindo”. Agora diz de onde vem: “mesmo depois de liberto / com os sapatos rotos / um ilhéu / que o destino não quis / soteropolitano”.

 

O poeta, jornalista e acadêmico Almir Zarfeg

Como tantos de nós, Edson Cruz é natural do sul da Bahia e se define como um grapiúna que, um belo dia, rumou para o Sul-Maravilha a fim de se realizar como pessoa e ser humano. Lá se tornou pai de família, editor, crítico literário e poeta com títulos importantes publicados em prosa e versos, como este “Negrura”, que devorei e cuja leitura recomendo entusiasticamente.

 

Com este “Negrura” – que guarda muita semelhança gráfica e semântica com “Negrícia”, “Negridade” ou “Negritude” – Edson Cruz segue dando o seu testemunho da cor da pele, como diria Adão Ventura, que ainda impacta para o bem e para o mal. Mais pro mal, infelizmente.

 

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Almir Zarfeg – poeta, ficcionista e jornalista – é presidente de honra da Academia Teixeirense de Letras (ATL)

 


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