Publicado em: 25/09/2023 Atualizado:: setembro 25, 2023
Por Almir Zarfeg
Eu li “Véspera” (Record, 2021), de Carla Madeira, de quatro fôlegos, tamanha a atração que a obra exerceu sobre mim. São dela também “Tudo é Rio” (2014) e “A natureza da mordida” (2018), livros editados pela mesma editora e que pretendo ler em breve. Agradeço à amiga Janeuce Cordeiro a indicação.
A leitura de “Véspera” me fez compreender alguns porquês do sucesso de Carla Madeira como ficcionista. Hoje ela é a escritora mais lida do país, ao lado de Itamar Vieira Júnior, autor dos best-sellers “Torto Arado” (2019), que resenhei, e “Salvar o Fogo” (2023), que ainda não li. (Eu sugeri o romancista baiano a Jan, que o indicou aos filhos.)
Primeiro porquê: os livros da autora são simplesmente irresistíveis, de maneira que, uma vez começada a leitura, o leitor é envolvido por um magnetismo que não lhe deixa alternativa senão ir até o fim da história. Isso, com certeza, desperta interesse e satisfação ao mesmo tempo. Não basta que a história seja interessante e/ou original, ela precisa ser bem contada.
Segundo porquê: além do talento para narrar uma história, é necessário que ela seja estruturada em cima daqueles elementos – bem conhecidos mas nem sempre respeitados –, sem os quais fica mais difícil conquistar a simpatia do leitor, e mais fácil enveredar pelo mero entretenimento.
Estou me referindo aos elementos constituintes da narrativa: enredo (sinônimo imperfeito de história), tipos de narrador (onisciente no livro em questão), personagens (com maior, menor ou nenhuma densidade psicológica), tempo (misto de cronológico e psicológico), espaço (Minas Gerais) e – por último mas não menos importante – domínio da linguagem e clareza do tema. Carla Madeira deita e rola, senhora da trama, do destino dos personagens e das nuances de que os bons prosadores lançam mão, na medida certa, para fazer a diferença na hora de entregar um produto de qualidade ao público.
Mas vamos pela ordem, pois estamos diante de alguém que se acredita mais marcada pelo improviso do que pela elaboração, em termos literários. Em outras palavras, tem muita mineirança (diria Fábio Lucas) envolvida nesse jogo em que poético e prosaico dão as mãos e se completam.
A irresistibilidade – presente nas suas três obras e elogiada pela crítica literária, de um lado, e aplaudida pelos leitores, do outro – constitui mérito da autora. Ela consegue aliar a habilidade técnica com a escolha de temas não apenas comuns, mas também universais, como o abandono (em Véspera), o amor (em Tudo é Rio) e a amizade (em A natureza da mordida), explorando com talento os desdobramentos desses afetos capazes de inspirar personagens e situações inesquecíveis no romance contemporâneo.
Em “Véspera”, por exemplo, uma mãe bem-sucedida na sua profissão é levada a cometer um ato absurdo, para dizer o mínimo, pressionada por uma relação tóxica que vinha sendo empurrada com a barriga até explodir, numa bela manhã, no abandono do filho de cinco anos em uma calçada de uma avenida de mão única de uma cidade grande! Ao agir assim, Vedina se revelou cruel consigo mesma, com o marido Abel e, sobretudo, com o filho inocente Augustinho.
O tema da rivalidade entre irmãos gêmeos – com consequências previsíveis (fratricídio simbólico) e extraído do conhecidíssimo drama adâmico – aparece na obra conduzido de modo eficiente por Carla Madeira. A existência dos irmãos e o embate travado entre eles, latente no início e explícito no fim, garantem os picos de envolvimento e suspense da leitura; a manutenção do núcleo central de personagens (os irmãos Caim e Abel e respectivas esposas Veneza e Vedina), o núcleo secundário (o casal Antunes e Custódia, pais dos gêmeos) e outros tipos ficcionais que, com destaque ou não, ajudam na formatação do enredo. Citam-se também os padres Alberto e Tadeu, os professores Bruno Jardim e Adílson Campos Valente – o Imensa, os estudantes Antero, Lourenço e Paulo Parede.
A trama flui, prende e conquista o ilustre público graças ao talento da autora que soube imprimir à narração simplicidade e sofisticação em equilíbrio; aproveitar elementos do cotidiano, fazendo uso da linguagem coloquial, inclusive com apelo aos ditos populares, devidamente contextualizados; há descrições eróticas na medida certa, para não chocar a inocência nem constranger a moral dos puristas. Enfim, ingredientes que aproximam texto/leitor e, também, promovem identificação fabulação/realidade, sem apelar para soluções mágicas no plano narrativo ou inconsistentes no plano da expressão.
Agora, uma notinha sobre as estratégias utilizadas pela autora para dar sustentação à trama, fazendo com que a história fluísse, com que cativasse os leitores, com que o enredo se consolidasse enquanto tal e, por que não?, com que o livro se transformasse nesse acontecimento editorial.
Para início de conversa, o enredo foi concebido com narrador onisciente (que inicia a história, a preside durante a sucessão de ações e a conclui – isso mesmo – de posse da criança abandonada pela mãe); o discurso indireto livre, volta e meia, se mistura na prosa deixando-a mais sofisticada; o modo dual de contar a história, com duas linhas temporais paralelas e hospedadas no presente (tecida por Vedina) e no passado (tecida pelo narrador), para que as ações atuais pudessem suceder progressivamente (1, 2, 3, 4, 5, etc.), em direção ao passado, enquanto as ações decorridas pudessem suceder regressivamente (18, 17, 16, 15, 14, etc.), em direção à atualidade. No final, as duas linhas do tempo se encontram num “gran finale” que reúne muito sincronismo e nenhum improviso.
Claro que uma obra plural como esta não passaria incólume aos conflitos, dilemas e desafios desta nossa época de extremos políticos e sociais; relações interpessoais líquidas; narrativas carentes de fôlego e ritmo; muito pelo contrário. A autora faz questão de dialogar com todos, sobretudo com as pessoas equipadas com suas neuras e perturbações, desejos e ausências. Enfim, um manancial para os livros que ainda serão escritos e editados.
Carla Madeira não é indiferente à vida e suas pulsões, tanto que tomou partido nas grandes dicotomias, digamos assim, verossimilhança versus imaginação, poético vs. referente, intertextualidade vs. originalidade, as quais podem ser observadas à primeira leitura de suas obras. Esse diálogo aparece aqui e acolá – seja na releitura/readaptação do drama bíblico, nas incursões psicanalíticas e religiosas – seja nas referências (autorais ou de terceiros) vestidas de epígrafes que acompanham os numerais que demarcam os capítulos.
Com jeitinho mineiro ou não, portanto, podemos tirar algumas conclusões (ou mesmo uma boa lição de moral) das histórias contadas pela romancista nascida em Belo Horizonte, capital mineira, na década de 60. Mas dificilmente seremos capazes de determinar ou prever o momento exato em que se dá um efeito borboleta. Ou identificar a véspera da véspera da véspera de algo, não é mesmo? Por isso, viver é muito perigoso. Por isso, a vida quer da gente coragem. Mineiranças.
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Almir Zarfeg – poeta, jornalista e ficcionista – é presidente de honra da Academia Teixeirense de Letras (ATL).