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“A Rússia é metade das nossas vendas” – ou era. Os efeitos sem precedentes de uma economia cambaleante

Publicado em: 20/04/2022 Atualizado:: maio 29, 2023

 

Mundo – Os sapatos, 600 pares no total, estavam intocados em um armazém italiano: sandálias na cor magenta, decolleté com salto e sapatilhas douradas, tudo destinado a butiques russas, mas preso em um limbo de sanções e convulsões econômicas geradas pela invasão da Ucrânia pela Rússia.

 

A Sergio Amaranti, companhia italiana de calçados com uma montanha de mercadorias não pagas, está entre os milhares de empresas europeias que lutam contra a crescente repercussão do conflito. “É assustador”, afirmou Moira Amaranti, que administra a empresa fundada por seu pai e seu tio, acrescentando temer que a perda financeira repentina possa desestabilizar a empresa de 47 anos, que sustenta seus 20 trabalhadores de longa data e seus familiares: “A Rússia é metade das nossas vendas. E agora temos um problema.”

 

A guerra de mais de um mês da Rússia contra a Ucrânia está prejudicando a recuperação econômica da pandemia da Covid-19 na Europa. Fabricantes e varejistas que estavam se beneficiando do crescimento renovado vão se ajustando a fortes oscilações nas condições de negócio que injetaram uma nova incerteza na tomada de decisões econômicas.

 

As sanções destinadas a punir Moscou por sua invasão estão se voltando contra as empresas de maneira inesperada, minando sua confiança e capacidade de planejamento. As pequenas como a Sergio Amaranti enfrentam um futuro nebuloso com a interrupção das exportações para um de seus principais mercados. Grandes multinacionais que vêm se afastando da Rússia estão avaliando o risco de apreensão ou nacionalização de seus ativos.

 

As reverberações da guerra no aumento dos preços da energia, dos alimentos e das commodities estão causando problemas ainda mais amplos, forçando os fabricantes europeus de turbinas, fábricas de vidro e usinas de zinco a retardar ou pausar a produção. O crescente congestionamento nas cadeias de logística e de suprimentos aumentou a pressão inflacionária, levando os varejistas a repassar custos crescentes aos consumidores e a encontrar fornecedores alternativos. A inflação anual atingiu uma alta de 40 anos, chegando a sete e meio por cento na Europa em março.

 

À medida que a crise ameaça as empresas europeias e seus trabalhadores, o governo da França, o da Espanha e o de países vizinhos estão redirecionando prioridades de gastos e prometendo enormes subsídios para compensar as perdas, além das centenas de bilhões já gastos para mantê-los à tona durante a pandemia.

 

A Comissão Europeia autorizou as companhias afetadas pelas sanções contra a Rússia a receber até 400 mil euros (US$ 441 mil) em auxílios estatais. Empresas e consumidores europeus têm descontos do governo na bomba de gasolina e na conta de energia. “Quanto mais tempo durar a guerra, maiores serão os custos econômicos e maior a probabilidade de acabarmos em cenários mais adversos”, alertou recentemente Christine Lagarde, chefe do Banco Central Europeu. No mesmo dia, a Alemanha, maior economia da Europa, cortou sua previsão de crescimento para 2022 em mais da metade, para 1,8 por cento.

 

A Cogemacoustic, empresa familiar que emprega 50 pessoas em Limoges, no centro-oeste da França, nunca imaginou que uma guerra tivesse algum efeito sobre ela. Especializada em ventiladores industriais imensos usados em túneis e minas, assinou contratos pela primeira vez na Rússia no ano passado para ajudar a compensar uma desaceleração nos negócios em consequência dos lockdowns da pandemia, segundo Marion Oriez, a executiva-chefe.

 

As vendas russas rapidamente aumentaram para cinco por cento dos negócios e se esperava que dobrassem este ano – até que a Rússia invadiu a Ucrânia. Os clientes russos não puderam pagar os 90 mil euros pelos ventiladores já entregues por causa das sanções aos bancos russos, afirmou Oriez. Outras 20 unidades, do tamanho de um caminhão pequeno, com destino à Rússia, estão paradas no chão de sua fábrica – prejuízo de 350 mil euros.

 

A empresa já estava enfrentando a escassez de materiais e o aumento do custo das commodities e da energia quando a guerra interrompeu a vinda do aço da Ucrânia, necessário para fazer os ventiladores, exigindo que Oriez encontrasse novas fontes e desacelerasse a produção da fábrica. “Nossa situação ainda é difícil. Tudo está muito incerto para a empresa.”

 

Trabalhador produz sapatos destinados à Rússia na sapataria italiana de Sergio Amaranti em Civitanova Marche, Itália, 18 de março de 2022. (Clara Vannucci/The New York Times)

 

 

Na Sergio Amaranti, com sede na cidade de Civitanova Marche, parte de um grande grupo de outros fabricantes de calçados com longos laços com o mercado russo, há dificuldade em decidir se a empresa deve continuar produzindo apesar das encomendas perdidas.

 

Moira Amaranti contou que se reuniu com sua família e os trabalhadores para decidir se interromperia a produção de mais 500 pares de sapatos que os varejistas da Rússia haviam encomendado. Provavelmente, seria impossível entregá-los tão cedo, e sete grandes encomendas russas já haviam sido canceladas. Por fim, decidiram ir em frente com a produção, porque já tinham comprado o couro e as solas. “Estou muito preocupada. Um empresário carrega o peso de muitas famílias”, afirmou Amaranti, cuja prioridade é encontrar soluções para continuar pagando seus trabalhadores.

 

Para a cervejaria Eichbaum, em Mannheim, na Alemanha, perder seu mercado de exportação russo foi apenas o início dos problemas causados pela guerra.

 

Terceira maior exportadora de cerveja da Alemanha, a empresa já havia sofrido com dois anos de vendas paralisadas, já que a pandemia fechou bares e cancelou festivais, e com entraves em sua cadeia de suprimentos. Agora, o preço do lúpulo e dos outros grãos usados na fabricação da bebida mais do que dobrou, graças ao temor de escassez ligado à perda das culturas deste ano da Ucrânia, conhecida como o celeiro da Europa, explicou Uwe Aichele, responsável pelas vendas internacionais da cervejaria. Esses problemas foram agravados pela falta de latas de alumínio e garrafas de vidro – ambas produzidas na Ucrânia – e pelo alto preço da energia que está assolando a Alemanha. “Quanto mais isso durar, pior vai ficar.”

 

Os varejistas têm de procurar substitutos menos desejáveis para as commodities que de repente estão em falta, desagradando aos clientes. Uma empresa britânica, a Iceland, está entre as inúmeras cadeias de supermercados na Europa que enfrentam a escassez de óleo de girassol da Ucrânia, que, em conjunto com a Rússia, é responsável por 70 por cento da oferta global.

 

A Iceland precisou começar a usar o óleo de palma novamente para fazer vários produtos alimentícios, depois de tê-lo cortado para cumprir as promessas de sustentabilidade ambiental, escreveu o diretor-gerente, Richard Walker, em uma mensagem aos clientes no site da empresa.

 

A Mercadona, maior operadora de supermercados da Espanha, introduziu um limite de cinco litros de óleo de girassol por consumidor. No San Ginés, café centenário em Madri, famoso por seus churros, massa crocante frita em óleo de girassol, Pablo Sánchez, o gerente, disse que talvez seja necessário repassar um aumento de 20 por cento no preço para os consumidores. “Acabamos de sair do pesadelo da pandemia, e agora estamos enfrentando essa guerra, de modo que, neste momento, um negócio precisa mostrar extrema resiliência para sobreviver.”

 

Na Vetropack, fabricante suíça de recipientes de armazenamento de vidro com fábricas em toda a Europa, o executivo-chefe, Johann Reiter, está se preparando para a possibilidade de que o ataque da Rússia possa ir além da Ucrânia. Cerca de 600 trabalhadores na fábrica da empresa perto de Kiev foram forçados a interromper repentinamente a produção quando tanques russos invadiram o país. Cerca de 275 toneladas métricas de vidro derretido acabaram solidificando dentro do forno da fábrica, inutilizando o material.

 

A fábrica ucraniana fez 700 milhões de garrafas de cerveja, potes de geleia e outras embalagens no ano passado, e, sem ela, espera-se que a receita da Vetropack caia dez por cento. A empresa não pode compensar a produção perdida porque suas outras fábricas estão trabalhando no máximo da capacidade; portanto, os gerentes analisam se devem mudar seu mix de produtos.

 

Reiter está de olho na vizinha Moldávia, onde outra fábrica da Vetropack opera. A empresa está se preparando para o pior cenário, no qual a Rússia também a invade, colocando em prática planos de evacuação e desligamento, bem como geradores reserva e telefones satélites para os gerentes manterem a comunicação. “É provavelmente o período mais difícil do meu tempo como CEO”, lamentou.

 

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Fonte: c. 2022 The New York Times Company

 


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